Caridade: na expressão comum, amor ao próximo; agir por pura caridade; esmola, favor, beneficio; fazer a caridade; bondade, compaixão. Pelo menos segundo o Aurélio. Ou pelo menos segundo a versão do Aurélio que eu encontrei online.
No Brasil, a noção de caridade que, na minha opinião, a maioria (e maioria não significa todo mundo) das pessoas tem (a mesma que eu tinha aos 12 anos) é aquela do Criança Esperança. Caridade em conta, anual e indolor. Você assiste um bando de global sem talento, faz uma ligação do sofá de casa, o dinheiro é debitado diretamente da sua conta telefônica e todo mundo fica feliz. Você não se sente culpado por não ajudar e também não precisa manter o menor contato com whoever você tenha ajudado. Assim, quando aquela criança pobre e negra bater na janela do seu carro pedindo dinheiro você pode tranquilamente fingir que ela não está ali.
Na mesma época em que comecei a me questionar se isso era realmente o máximo que se podia ser feito, algo me dizia que isso não acontecia somente em país pobre, não. Na verdade, a dica veio do George Michael, que em 1990, cantava que "caridade é um casaco que você duas vezes por ano".
Aqui ilha vizinha a do George Michael também não é tudo perfeito. Prova disso são aquelas pessoas de colete verde (eu sinceramente não me lembro agora o nome da organização para a qual elas trabalham) raising awareness por aí, e se dizendo voluntárias. Não são voluntárias coisa nenhuma porque são pagas para fazer aquilo.
Não que não exista muita gente fazendo trabalho voluntário por aqui. Existe de monte.
E para não falar só de coisa ruim, uma das coisas que eu acho que os irlandeses deveriam se orgulhar muito é o fato de que as pessoas que estão pelas ruas pedindo esmola são tratadas, pela grande maioria, como gente. Ou seja, quando elas falam com você, elas merecem uma resposta. Mesmo que seja uma negativa ao pedido de trocado. Aqui ser pobre não é ser indigente.
Mas o assunto me veio à cabeça depois de acompanhar a trabalheira danada que meu marido está tendo para conseguir uma "celebridade" para fazer uma aparição voluntária numa campanha para uma associação de luta contra o câncer aqui na Irlanda. Se você mora por aqui, sabe de quem eu estou falando.
A campanha em si, que já aconteceu no ano passado, mas sem a resposta esperada, pede que você mulher e seu grupo de amigas, que normalmente se reúne para sair, ao invés de gastar dinheiro numa night out, organize uma festa em casa, economize a grana e doe para o projeto de luta contra o câncer de mama.
Para lançar a campanha uma dessas nights in está sendo organizada na casa de uma colega de trabalho de I. Recebi um convite e aceitei de bom grado.
Depois de ter aceitado, I. me contou um segredo. A idéia era convidar uma celebridade irlandesa (homem, bonito e famoso, obviamente) para aparecer de surpresa e se juntar as meninas.
Quando nenhum irlandês se mostrou disponível, ou caridoso, eles passaram a procurar qualquer outro homem bonito e relativamente famoso, irlandês ou não (eu sugeri Sir Paul McCartney, já que para conhecê-lo pessoalmente eu doaria meu seio direito para a campanha, mas acho que não gostaram da sugestão).
Até o final dessa semana a celebridade mais provável para aceitar o trabalho era o ator de TV americano (que deve ser tão mesquinho que está fazendo até propaganda para a L'Oreal), daquela série sobre médicos e hospitais que eu nunca assisti e não tenho a menor vontade de assistir. Não, não estou falando de House.
Acontece que o tal do ator está pedindo uma puta grana para aparecer, além de 3 passagens aéreas de primeira classe (Nova York - Dublin) e hospedagem em hotel 5 estrelas, o que custaria ao projeto uma grana absurdamente alta.
Que ele receba passagens e acomodação para ele somente (afinal é só uma noite), eu até entendo (em partes, é verdade), mas o que há de caridade em cobrar para fazer a tal da aparição? Claro, eu também entendo que o cara não deve trabalhar de graça e aceitar todo e qualquer convite de toda e qualquer instituição de caridade, mas se for assim, uma vez por ano, que seja, ele não vai ficar assim tão mais pobre, né?
Quer dizer então que eu, e mais outras tantas garotas, deixaríamos de sair, passaríamos a noite na casa de um de nós, doaríamos o dinheiro que seria gasto na noitada para combater o câncer de mama, enquanto o bonito engorda sua conta bancária? Ou pior, o dinheiro arrecadado seria mesmo usado na luta contra o câncer ou para pagar cachê de ator?
Sou eu, ou as coisas andam meio distorcidas?
N.